Deschanel, Émile
Mais Uma Palavra Sobre o Sr.Deschanel
DO JOURNAL DES DÉBATS
No número anterior da Revista Espírita os leitores puderam ver, ao lado de nossas reflexões sobre o artigo do Sr. Deschanel, a carta pessoal que lhe enviamos. Muito curta essa carta,cuja inserção lhe pedíamos, tinha o objetivo de retificar um grave erro que ele havia cometido em sua apreciação. Apresentar a Doutrina Espírita como baseada no mais grosseiro materialismo era desnaturar completamente o seu espírito, pois, ao contrário, ela tende a destruir as idéias materialistas. Havia em seu artigo muitos outros erros que poderíamos ter apontado, mas aquele era por demais importante para ficar sem resposta; tinha uma gravidade real porque tendia a lançar um verdadeiro descrédito sobre numerosos adeptos do Espiritismo. O Sr. Deschanel julgou não dever aquiescer ao nosso pedido e eis a resposta que nos dirigiu:

“Senhor,

“Recebi a carta que me fizestes a honra de escrever, em data de 25 de fevereiro. O Sr. Didier, vosso editor, encarregou-se de vos explicar que tinha sido a seu reiterado pedido que eu havia consentido em noticiar, no Débats, o vosso O Livro dos Espíritos, desde que o pudesse criticar como bem entendesse; era a nossa combinação. Agradeço por terdes compreendido que, nestas circunstâncias, usar do vosso direito de contestação teria sido estritamente legal, mas, certamente, menos delicado do que a abstenção com que havíeis concordado, conforme o Sr. Didier me informou esta manhã.

“Quereis aceitar, etc.

E. Deschanel”

Esta carta peca pela falta de exatidão em diversos pontos. É verdade que o Sr. Didier enviou ao Sr. Deschanel um exemplar de O Livro dos Espíritos, como é costume de editor para jornalista; mas o que não é exato é que o Sr. Didider tivesse se comprometido a não nos dar explicação sobre suas supostas instâncias reiteradas para que lhe fizesse uma apreciação. Se o Sr. Deschanel julgou dever consagrar-lhe vinte e quatro colunas de zombarias, ele nos permitirá supor que não tenha sido por condescendência nem por deferência para com o Sr. Didier. Aliás, já dissemos que não foi por isto que nos lamentamos: a crítica era um direito seu; e, desde que não partilha do nosso modo de ver, estava livre para apreciar a obra segundo o seu ponto de vista, como acontece diariamente. Por alguns, uma coisa é levada às nuvens, por outros, depreciada, mas nem um nem outro desses julgamentos é inapelável. O único juiz em última instância é o público, sobretudo o público futuro, que é alheio às paixões e às intrigas do momento. Os elogios obsequiosos das camarilhas não o impedem de enterrar para sempre o que é realmente mau, e o que é realmente bom sobrevive, a despeito das diatribes da inveja e do ciúme.

Desta verdade duas fábulas darão testemunho,Tanto a coisa sobeja em provas, teria dito La Fontaine. Não citaremos duas fábulas, mas dois fatos. Quando de seu aparecimento, Fedra, de Racine, teve contra si a corte e a população da cidade, e foi ridicularizada. O autor sofreu tantos desgostos que aos 38 anos renunciou a escrever para o teatro. A Fedra de Pradon, ao contrário, foi exaltada além da medida. Qual é hoje a sorte dessas duas obras? Um outro livro mais modesto, Paul et Virginie, foi declarado natimorto pelo ilustre Buffon, que o achava enfadonho e insípido; entretanto, sabe-se que jamais um livro foi tão popular. Com esses dois exemplos, nosso objetivo é simplesmente provar que a opinião de um crítico, seja qual for o seu mérito, não passa de uma opinião pessoal, nem sempre ratificada pela posteridade. Mas voltemos de Buffon ao Sr.Deschanel, sem comparação, porque Buffon enganou-se redondamente, enquanto o Sr. Deschanel crê, sem dúvida, que dele não dirão a mesma coisa.

Em sua carta o Sr. Deschanel reconhece que o nosso direito de contestação teria sido estritamente legal, mas acha mais delicado de nossa parte não o exercer. Ainda se engana completamente quando diz que concordamos com uma abstenção, o que daria a entender que nos rendemos a uma solicitação, e mesmo que o Sr. Didier teria sido encarregado de o informar. Ora, nada é menos exato. Não julgamos dever exigir a inserção de uma exposição contraditória. Ele é livre para achar nossa doutrina má, detestável, absurda, de o gritar de cima dos telhados, mas esperávamos de sua lealdade a publicação de nossa carta para retificar uma alegação falsa, e que podia atingir a nossa reputação,no que tange a nos acusar de professar e propagar as próprias doutrinas que combatemos, como subversivas da ordem social e da moral pública. Não lhe pedíamos uma retração, à qual seu amorpróprio se teria recusado, mas apenas que inserisse o nosso protesto; por certo não estaríamos abusando do direito de resposta, considerando-se que em troca de vinte e quatro colunas, não lhe pedíamos mais que trinta a quarenta linhas. Nossos leitores saberão apreciar sua recusa; se ele quis ver delicadeza em nosso procedimento, não poderíamos julgar o seu da mesma maneira.

Quando o Sr. abade Chesnel publicou no jornal Univers, em 1858, seu artigo sobre o Espiritismo, deu da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas uma idéia igualmente falsa, ao apresentá-la como uma seita religiosa com seu culto e seus sacerdotes. Tal alegação desnaturava completamente seu objetivo e suas tendências e podia confundir a opinião pública. Era tanto mais errônea que o regulamento da Sociedade lhe proíbe ocupar-se de matérias religiosas. Com efeito, não se conceberia uma Sociedade religiosa que não pudesse ocupar-se de religião. Protestamos contra esta asserção, não por algumas linhas, mas por um artigo inteiro e longamente motivado que, a nosso simples pedido, o Univers julgou dever publicar. Lamentamos que, em idêntica circunstância, o Sr. Deschanel, do Journal des Débats, se creia menos moralmente obrigado de restabelecer a verdade do que os senhores do Univers. Se não fosse uma questão de direito, seria sempre uma questão de lealdade. Reservar-se o direito de ataque sem admitir a defesa é um meio fácil de fazer crer aos seus leitores que ele tem razão.
R.E. , abril de 1861, p. 153